Somente cerca de 10 dias depois do ocorrido que consegui chegar em minha casinha e sentar para escrever, mas durante todo esse tempo fiquei com esse dia na minha cabeça, um dia que foi uma viagem de ensinamentos.
Acordei olhei pro lado o Diego já não estava mais lá, desci pela parede de nosso quarto de pedras e barro com um sensação estranha, "saiu com a Toiota", reparo que o João continua dormindo tranquilamente.
Vou caminhando pelo sitio Karroças na Chapada dos Veadeiros lembrando de nossa chegada na noite anterior, fogo pelo caminho todo... Logo chega o Diego um tanto quanto desesperado : "Sá ta queimando tudo Sá, ta chegando". Meu coração acelera e no mesmo instante começo a ouvir aquele barulho se aproximando, imagine o som de uma fogueira e multiplique muitas vezes esse som, era ele que vinha cada vez mais próximo com as fuligens que caiam em nossas cabeças.
"Vamos, vamos, logo" eu digo me desesperando. Não há muito a ser feito, não existem bombeiros na região, fazia tempo que queríamos tornar o sitio uma base do Prevfogo, mas nesse momento nem abafadores de pneu tínhamos, eles tinham se quebrado no último incêndio. "Imprudência".
O fogo não pode chegar no sitio, todas as plantações a agrofloresta, há 5 anos que eles conseguem impedir que o fogo chegue no sitio, coincidentemente esse era o dia de aniversário de 5 anos do sitio Karroças.
O Diego acorda o João, e eu vou me equipar, tênis, calça e chapéu é tudo que tenho, o João ainda tenta começar a fazer uma tapioca, mas não há tempo, o som do fogo parece ensurdecedor nesse momento, encho um galão de água. "Vamos !".
Já da pra ver o fogo, ele ta com força, grande, uma linha chegando, não deixa de ser uma imagem bonita. Não temos nada, paramos e cortamos as folhas de uma palmeira nosso instrumento. Jogo água no meu tênis. "A tatica é essa, não deixar o fogo atravessar a estrada."
" Se atravessar fudeu".
Corremos cada um pra um lado, não da pra saber nem por onde começar, começo a rezar pra tudo que posso. "Vou movimentar o meu fogo, o meu fogo interno, fogo contra fogo é assim que vencerei". Fico repetindo, buscando essa força, essa energia tentando assim me conectar com esse fogo e criar uma compreensão do que ele é.
Começo a bater no fogo, muita fumaça que cegava, intoxicava, um calor quase insuportável, deviam ser quase 9 da manhã e o calor do fogo se misturava com o calor do cerrado, muito mais difícil apagar o fogo de dia. Parece que nada que eu faço adianta, queria ajuda, mas não tinha ninguém, só o Carcará que rondava a minha cabeça se aproveitando da situação a espera de alguma presa fugindo do fogo.
E o fogo ia consumindo tudo, matando tudo, os matos, as flores coloridas do cerrado, as casas dos animais, queimando as árvores, revelando as tocas, os ninhos, as cobras...
Me surpreendi ao conseguir apagar um pedaço que estava quase pulando a estrada, mas não tem muito tempo para comemorar tem muito fogo pra todo lado.
A garganta ta seca, os olhos lacrimejam choro e ardor, me sinto zonza, lembro que não tinha nem tomado café. "Mas a janta de ontem foi boa, bem reforçada" não há tempo pra lamentações, só o descer e o levantar dos braços em ritmo frenético, mais rápido que o fogo, que a brasa.
Tinha passado 15 dias remando antes disso, parecia que tudo tinha sido um treino, um preparo para estar naquele momento.
"Pelas cobras, pelos lagartos, as curicacas, o tamanduá bandeira !!"
Quando eu sentia que estava conseguindo controlar alguma coisa o vento mudava de direção e o fogo vinha pra cima de mim. "Meu Deus, Mãe Divina, Ganesha, Shiva". Vou evocando todo mundo e começo a pensar por que os Deuses que adoro são todos Indianos, tento pensar em algum Deus Brasileiro, mas logo percebo que nada disso existe, Deus é tão universal quanto esse fogo.
Meu estomago começa a doer, arder, sinto estar queimando por dentro. Movimentei tanto o fogo dentro de mim que agora esse fogo também me consumia. " Evocar a sutiliza do fogo é algo muito mais complexo do que ascender o fósforo". Penso sobre esse aspecto destruidor e transformador do fogo. "Parece que nada sei sobre a minha força".
O João vem em minha direção as folhas dele tinham queimado, percebo que essa é uma hora boa para lidar com o meu fogo, dou a minha pra ele e vou caminhando pra buscar mais, aproveitando pra respirar, pra equilibrar, ar e água "Não é o fogo contra fogo, é encontrar a sutileza desse equilíbrio".
Volto com um novo animo, o Diego informa que o João tinha sido picado por uma abelha e ele é alérgico. Não há tempo de ver como ele esta, somos dois agora.
E por aqueles lugares que eu sempre andei com tanta cautela e até um certo receio, agora eu corria, pisando no meio do mato e escorregando nos barrancos, nada disso parecia importar. "Pela jaguatirica, pelas araras, tatu, anta, o lobo ahhh pelo lobo!!"
Penso que devem ser quase 11 horas, horário que ia ter o encontro das mulheres guerreiras na aldeia multiétnica, que eu queria tanto participar. Me conecto com a força dessas mulheres e nem sinto mais os meu braços, e o ardor. O fogo meche com a gente de uma forma é um transe, nada mais me incomodava, nada mais eu pensava.
O João voltou, tomou o remédio. Conseguimos isolar bem o fogo, não tem mais tanto risco de pular pro outro lado, a meta agora era outra, proteger a grotinha, uma vereda cheia de buritis
Lembro do seu Jão falando "aquela grotinha que nunca seca, esta seca já em julho". A seca esta brava. As plantas são fixadoras de água mas são tantas as queimadas ... E o cerrado é onde se localiza a maioria das bacias hidrográficas do país.
"Mãe, minha Mãe Divina, por favor não deixa o fogo chegar na nascente em cima do morro, a nascente onde cresce aqueles juçaras que sempre namoramos esperando seu fruto roxo, ali onde observamos o casal de araras fazendo ninho no tronco do buriti seco."
Ahh quero chorar de raiva! "Filha da Puta" grita o Diego e logo ele completa "Não o fogo, o fogo é amigo". "Filha da puta o Lorival que bota fogo todo ano pro seu gado", "Não, nem ele eu posso xingar". "As pessoas que comem carne também financiam tudo isso." As pessoas mais pobres tem gado mas não tem terras pro gado, então eles criam o gado solto e colocam fogo pra todo lado pra tudo virar pasto.
Parece metáfora barata, mas ficava muito claro que com o ódio o fogo aumentava.
"Pela cotia, pelos veados, o macaco prego, o urubu rei!"
"Pela cotia, pelos veados, o macaco prego, o urubu rei!"
Controlamos aquele lado, ufa uma vitória, um respirar aliviado. Entramos no carro, a Toiota que nos levava para passear cachoeiras e morros agora era nosso caminhão de combate.
Chegamos em uma parte montanhosa cheia de pedras, muito mais difícil andar lá e se equilibrar, mas é onde o fogo e esta mais fraco e temos que aproveitar. Sinto a sola do meu tênis mole mas continuo... "abuelitas indestrutíveis ".
Meu corpo já esta bem fraco, aquela adrenalina inicial já não estava fazendo tanto efeito. Não dormi direito na noite anterior, tinha visto um rato e fiquei a noite inteira com medo que ele subisse em minha cama. Nesse momento, entre o fogo e as pedras, compreendi muito internamente em como sou tola com meus ínfimos traumas, senti vontade de rir como se me observasse de longe. Relembro por quantos fogos eu já passei e me sinto plena ao perceber que ele passa.
Já passavam das 14 horas. O fogo, pelo menos, naqueles lados estava controlado, olhávamos aquele rastro de destruição a mata, as plantas, as copaíbas, jatobás, lobeiras e os cajuís que estavam floridos, e aguardávamos dia a dia o seus cajus, tudo queimado.
Mas sabíamos também que o cerrado tem uma capacidade regenerativa incrível. Abracei uma árvore que estava toda queimada com a expectativa de me conectar com ela, e ela me repetiu o que uma outra árvore próxima dali já havia me dito:
" A crueldade, o sofrimento é tudo coisa do ser humano, na natureza não existe isso".
Sati Sukalpa
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